quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Machado de Assis


Achei essa matéria na Folha, coluna Ilustríssima, de agosto/2010, e achei muito interesante trazer pra cá.
Machado de Assis é um ícone da nossa literatura e não deve ser nunca esquecido. Muito do que ele escreveu continua vivo e atual. No livro em questão, a novela O Alienista, a ironia de Machado de Assis é notória quando mostra a hipocrisia do ser humano que só pensa em seu próprio prestígio.

Bjs
Cintia
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Livro analisa "O Alienista", de Machado de Assis
15/08/2010 - 08h00
Euclides Santos Mendes - São Paulo.

Em entrevista ao caderno Ilustríssima, o professor de literatura brasileira na ECA-USP Ivan Teixeira comenta a novela "O Alienista", em que Machado de Assis (1839-1908) discute o significado da loucura na sociedade do seu tempo. Teixeira é autor do livro "O Altar e o Trono - Dinâmica do Poder em 'O Alienista'.
"O Alienista" foi originalmente publicado em 1882, na coletânea "Papéis Avulsos".

Folha - Como surgiu a novela "O Alienista", de Machado de Assis?
Ivan Teixeira - Há duas hipóteses. Em primeiro lugar, acredito que "O Alienista" tenha surgido da necessidade do escritor em preencher seu espaço regular em "A Estação - Jornal Ilustrado para a Família". Esse periódico de moda feminina pertencia a um grupo internacional alemão que editava 20 jornais em 19 idiomas. Quando se tratou de atribuir feição local a ele, criou-se uma seção literária. Machado de Assis tornou-se não só o principal colaborador, mas também uma espécie de editor do caderno. Permeneceu 19 anos nessa função. Essa é uma das hipóteses de meu livro. Em segundo lugar, "O Alienista" explica-se como intervenção artística do autor em questões cruciais de seu tempo como: pretensões da igreja no Estado moderno, intervenção da medicina na vida da cidade, noção de unidade política no Império, conceito de loucura e função social do hospício. Além disso, a novela tematiza a necessidade de equilíbrio diante da moda e da vaidade. Fala também do mau uso da imprensa. Tudo isso é abordado por meio do humor. Integrada à dinâmica do periódico em que foi publicada, a novela pretendia oferecer à nascente elite feminina do Império um modo desconfiado de interpretar questões culturais relevantes para o momento.

Folha - Em que medida "O Alienista" pode ser lido como uma manifestação da caricatura ou da charge jornalística?
Ivan Teixeira - A narrativa segue, entre outras sugestões, o estilo das caricaturas dos jornais humorísticos da sua época -como a "Revista Ilustrada", de Ângelo Agostini, e "O Mosquito", em que colaborava Rafael Bordalo Pinheiro. Acredito que, ao produzir deformações evidentes para as leitoras de "A Estação", "O Alienista" acabou por oferecer um enigma semântico ao século 21. Embora a novela critique a intromissão da igreja e do povo em assuntos do Estado monárquico, a leitura consensual privilegiou o motivo da loucura, que é um acessório para aquela questão. Mas há ironia também contra o próprio Estado monárquico. Ao traduzir para a linguagem verbal algumas propriedades do desenho burlesco das colunas dos jornais, "O Alienista" se apropria da sátira como uma espécie de espelho em que o observador reconhece todas as faces possíveis, exceto a sua própria. Sendo alusiva, essa espécie de crítica prefere a denúncia conceitual. Em vez de ofender, ela costuma ser apreciada como exercício dos direitos e deveres da cidadania. Acredito que a função primordial da caricatura em "O Alienista" tenha sido fornecer um repertório artisticamente refinado às camadas letradas do Segundo Reinado (1840-89). O texto oferecia as coordenadas críticas com que enfrentar o aspecto moral de questões políticas e culturais associadas à vida nas camadas que consumiam arte. Uma sociedade como a do Rio de Janeiro oitocentista não poderia aproximar-se do modelo de civilização europeia se desfavorecesse o surgimento e a consolidação de artistas que, pela crítica, legitimassem as instituições e os valores das camadas dirigentes locais, sobretudo aquelas empenhadas na modernização do país.

Folha - Como ler "O Alienista" à luz da sociedade brasileira do século 19?
Ivan Teixeira - Não acredito que Machado de Assis escrevesse para o futuro ou para a humanidade. Como todo autor que transcende o próprio tempo, envolveu-se até a medula com sua época. Nesse sentido, penso que "O Alienista" -assim como "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba"- deva ser entendido como formulação artística consentida e admirada por grupos empenhados em um novo projeto para o Brasil, que então se formava. Pertenciam a esse grupo políticos, jornalistas, escritores e alguns proprietários de grandes jornais. Machado de Assis ajudou a construir o repertório simbólico do projeto desse grupo, de cuja moralidade ele partilhava. Teria percebido, por exemplo, que o livro e a literatura não poderiam se afastar do jornal. Compreendeu também que a mulher não deveria permanecer à margem do debate artístico e cultural do tempo. Por isso, escrevia para elas. Não se pode esquecer que o periódico "A Estação", produzindo simultaneidade de moda e de notícias entre Paris e o Rio de Janeiro, requeria um artista que reconhecesse e aprimorasse o matiz internacional das leitoras. Elas tanto podiam estar na capital do Império brasileiro quanto na capital da moda europeia ou em centros cariocas que mimetizavam os salões de Paris. Assim como o pensamento politico brasileiro se inspirava em modelos europeus, Machado de Assis empenhou-se em incorporar padrões ingleses e franceses a seu texto, em busca de sugestões compatíveis com o nível da elite que então alterava o ambiente cultural do Rio de Janeiro. A apropriação de técnicas de Jonathan Swift, de Laurence Sterne, de La Bruyère e de Teofrasto não era opção isolada do escritor, mas postura coletiva que via na incorporação de padrões europeus uma forma de evitar o provincianismo regionalista de certas tendências da sociedade e da arte romântica.

Folha - Como ler "O Alienista" à luz do século 21?
Ivan Teixeira - A novela permite muitas leituras, mas não todas. Depende do repertório do leitor. Associá-la com o horizonte de expectativas do século 19 pode enriquecer a experiência do leitor atual.

Folha - Como situar a novela no conjunto da obra de Machado de Assis?
Ivan Teixeira - Entre 1863 e 1878, ele escreveu para o "Jornal das Famílias", veículo conservador no quadro político e cultural do tempo. O encerramento desse periódico coincide mais ou menos com a morte de José de Alencar (1829-77) e com o surgimento do suplemento literário de "A Estação" e da "Gazeta de Notícias". Consolidavam-se os matizes de uma nova poética cultural no Rio de Janeiro e de uma nova diretriz técnica em Machado de Assis. O escritor filia-se, então, a um grupo mais nuançado, cujos integrantes oscilavam entre a tradição e a renovação do pensamento político e da prática social no Brasil. "O Alienista" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas" são os primeiros resultados dessa nova situação, que se perpetua nas obras futuras do escritor. Assim, as sátiras desse período não se dirigem ao Brasil ou à burguesia, abstratamente considerados. Dirigem-se aos desvios de grupos conservadores com relação à nova proposta de ordenação do país. Por essa perspectiva, esse dois textos inaugurais devem ser entendidos como afirmação do projeto liberal que então se organizava. O código desse projeto não só pressupunha a denúncia dos velhos quadros de poder, como também admitia a ironia contra os próprios limites. Um dos índices de transformação do país pode ser exatamente a aceitação de um romancista como Machado de Assis. Ao encenar as contradições do tempo, ele dinamiza a imprensa e o repertório da literatura brasileira, sem deixar de atender a necessidade de refinamento do espírito crítico dos novos grupos. Ele transformou o ideário desse grupo em ficção partilhada. Machado de Assis tornava-se, assim, um artista tanto mais assimilável pelos novos tempos quanto menos incorporasse a denúncia agressiva, como se observa em Aluísio Azevedo e Raul Pompeia, escritores igualmente fortes, mas sem o mesmo prestígio. A opção machadiana pela alegoria moralizante explica, em parte, a aceitação maciça que teve entre os contemporâneos.

Folha - Qual a principal contribuição do seu livro para a fortuna crítica sobre Machado de Assis?
Ivan Teixeira - Procurei voltar ao texto e à história, desfazendo o mito de um autor preocupado com doutrinas inexistentes em seu tempo. Tentei demonstrar que "O Alienista" alegoriza o velho debate entre a teologia e a ciência no estabelecimento dos valores e das convicções.


Fonte: Ilustríssima

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